Taberna Fina

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Assim de repente chegam-me um mar de palavras à cabeça para descrever o que foi uma experiência memorável na Taberna Fina. Impossível falar da Taberna sem falar de imenso, sem falar de mar, porque é imenso, sem falar de Lisboa, porque se torna imensa de dia para dia.

Das pessoas que nos tornaram a noite imensa, a começar pela Filomena que tão bem nos recebeu, do Miguel, que nos levou e apresentou o que de imenso se faz na cozinha da Taberna, do Israel, que nos entregou com humildade as imensidões do Chef André Magalhães e do André Ribeiro, que se certificou que tudo estava, como é claro: imenso!

Tiradito de salmonete

Tiradito de salmonete

Isso, mar e terra, sem medos, antes pelo contrário, com coragem. Ideias muito bem definidas, uma viagem pelo que há de melhor no nosso pequeno jardim à beira mar que tanto tem para dar. André Magalhães levou-me longe, tão longe como quando era pequeno, no meu Alentejo. Há sabores que se escondem na nossa memória que, por capricho ou feitio, não se revelam quando queremos.

Parece que se esforçam por passar anos e anos sem que os encontremos, sem nos lembrarmos que alguma vez fizeram parte da nossa infância, como fizeram da minha, por exemplo. Não é novo que uma fragrância, um cheiro, um sabor, nos leve até aos lugares mais recônditos, àqueles mais distantes da nossa tão obstinada memória. Amizades para alguns, amores para outros, um sopro morno do sotavento no final de verão, um banho tardio nas águas cálidas do barlavento, um passeio pelo montado, refrescar a cara suada e matar a sede num ribeiro, um mergulho no atlântico, esse azul-profundo tão obviamente imenso.

Foi por aí mesmo que começámos. Um trago de mar, assim crú. Um trago entregue em espuma, os pés molhados na orla da praia: é de manhã, a frescura madruga, chega à primeira hora com os tímidos raios de sol. Depois há recheios de mar, delicados, súbtis, que se espalham na dita memória como que a despertar, sem pressas. Sobretudo sem malabarismos. Não é preciso nada, apenas paredes escuras, uma moldura para que os pratos brilhem por si, falem por si e que nos contem o que André Magalhães e a sua dedicada equipa têm para nos contar.

Mexilhão crú com algas

Mexilhão crú com algas

Não teria mais de oito ou nove anos quando comia pão cozido a lenha, o verdadeiro, o amassado por mãos que hoje, certamente, descansam e que naquela altura me eternizaram no paladar, nas mãos, nos olhos, um sabor que se escondeu de mim por demasiado tempo. Um sabor tão simples. Dos sorrisos da dona Escurinha recebia uma talega de pão, quente, tão quente que não podia tocar-lhe, acabado de sair do forno, do crepitar da lenha, estalidos ocres, essas doces notas musicais que guardam, secretamente, laivos de Monk, Ellington e Gillespie... se me entendem.

Ao chegar a casa, abrir o saco, tirar o pão, pôr na tábua, com alguma cerimonia, confesso, a ânsia tomava conta de mim, do miúdo de oito ou nove anos que comia pão sem nada, só para sentir e guardar o sabor escondido na côdea, cravado, incrustado na parte do pão que fica directamente em contacto com o tijolo quente, impregnado-o com fagulhas, cinzas, semifusas, um fá sustenido ou uma clave de sol que saía sem pudor em volutas de vapor do pão acabado de abrir. Foi tudo isto, para mim, que o André Magalhães conseguiu despertar num simples pedaço de cortiça, um pequeno berço quente, com folhas de eucalipto que abraçavam em memórias um pedaço de pão. Uma manteiga fumada com esse sabor intenso, a seiva de um comprido eucaliptal, folhas ao vento esticadas para o céu que escondem toda essa memória, o sabor de uma infância que se derreteu na boca. E ali um miúdo de oito ou nove anos com um sorriso estampado na cara, um sorriso imenso, claro! Sabes do que falo, não sabes, André?

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Um dia não são dias? Quem disse tamanha ignomínia? São, pois. Gostava que todos os dias fossem o dia, o primeiro dia, que me sentei à tua mesa, que entrei na tua Taberna, que comi sentado nos bancos de palha entrelaçada na cozinha da minha infância. O postigo, a lareira enorme que cabíamos uns seis ou sete lá dentro, os presuntos pendurados no fumeiro, as panelas desde manhã ao lume, está tudo lá, estava tudo lá. São os dias menos planeados, os momentos que menos contamos que, do nada, nos transportam para onde menos esperamos. Que nos roubam os pés ao chão. E que bom sermos levados de volta a sítios, a momentos, a sorrisos, sedes esquecidas, um ramo trepado, um joelho esfolado, uma ladeira descida em velocidade nos carrinhos de rolamentos. Ahhh.

Cogumelos, gema bio, sésamo

Cogumelos, gema bio, sésamo

Leitão, raíz de aipo e mostarda

Leitão, raíz de aipo e mostarda

Sim, para mim foi um regresso aos oito ou nove anos, para outros será um regresso ao outras idades, outros amores, outras memórias. Quem sabe as notas que sairão do saxofone, do piano, do contrabaixo harmónico, da tarola a contratempo, da bota de Coltrane a marcar o ritmo desconcertante e que fará outros regressarem, levantaram os pés do chão e escancararem um sorriso, aberto, sincero, adolescente.

Foi isto - obrigado André Magalhães - que encontrei entre as tuas duas janelas da esquina da Praça do Camões e da Rua do Loreto, no Consulat, na Taberna Fina, em  Lisboa, Portugal. Um espaço que demonstra uma simplicidade e que, por isso mesmo, surpreende. Não é preciso mais do que umas paredes escuras, umas mesas de mármore e um ambiente que em nada nos distrai do caminho, da ladeira, da vereda, para um miúdo de oito ou nove anos escancarar a alma e receber de peito aberto o que tens para contar, mostrar, recordar, viver. Ah… e que viver!

Obrigado André Magalhães. Obrigado Filomena. Obrigado Miguel. Obrigado Israel. Obrigado André Ribeiro. Taberneiros Finos.

Abóbora e Dióspiro

Abóbora e Dióspiro