ESTAMOS JUNTOS OU NEM POR ISSO?

foto de Vidar Nordli Mathisen

foto de Vidar Nordli Mathisen

Qualquer tentativa de resumir um fenómeno tão avassalador, como o que todos vivemos no momento, numa folha de papel é uma missão impossível. E foi essa luta que, desde o início da pandemia, fui travando comigo mesma, por um lado a necessidade de sistematizar os acontecimentos e as suas consequências devastadoras nas áreas que trabalho, por outro, ir percebendo que a cada dia que passava as realidades iam mudando e as reações mudavam com elas dificultando a tarefa da sistematização.

Na área da gastronomia e vinhos o contra-ataque veio sob a forma de delivery de lives de provas de vinho, aulas de cozinha, debates, conversas, parcerias com marcas, solidariedade, a retaliação de uma área que é por natureza criativa e que não se deixa abater, ou pelo menos calar, porque abatida está. Visivelmente. É aqui que entra o hashtag #resistir.


ALIMENTO PARA O CORPO

O sector agro-alimentar e a grande distribuição tiveram consequências diversas, uns ganharam muito, outros perderam muito mas o tecto não desabou como na restauração. Assistimos até a um fenómeno curioso, o estreitar da relação entre quem come e quem produz. De repente a bandeira da proximidade bateu-nos forte, na urgência agarramo-nos ao que era mais certo e estava perto. A visão do engenheiro Alfredo Sendim, do Montado do Freixo do Meio, quase a concretizar-se: conhecermos pessoalmente e valorizarmos quem nos põe o alimento na mesa e com ele co-produzirmos a nossa comida. Também nos apercebemos como estamos perto uns dos outros e, que dada a dimensão do país, podíamos mandar vir cabritos de Mirandela, nozes e amêndoas diretamente do Alentejo, peixe do Algarve. Os negócios da alimentação reinventaram-se. Tiveram de fecharam as portas mas abriram uma janela nos nossos laptops. Reinvenção que ajudámos os nossos clientes a fazerem nos seus negócios e que se mostra uma tendência que acredito que veio para ficar.

Os pequenos produtores viram os seus negócios darem um salto, muitos, como eu, foram ao moleiro buscar farinha, ou encomendaram online, centenas de cabazes de frescos bio foram entregues à porta, os grupos de apoio aos produtores nacionais multiplicaram-se nas redes sociais, o projeto Matéria do Chef João Rodrigues ganhou ainda mais forma. Nem tudo foi mau.

 

Em casa, tornámos-nos todos cozinheiros profissionais, quanto mais não fosse pelo curso intensivo de 4 ou 5 horas diárias que fomos obrigados a frequentar na cozinha. Houve lugar à #pãodemia, o hippy da fermentação despertou em cada um de nós, os nossos amigos iniciaram-se na compostagem ou numa horta e percebemos todos, de uma ou de outra forma, a importância do alimento nas nossas vidas (e consequentemente do papel higiénico).

ALIMENTO PARA A ALMA

Mas no reverso da medalha está a crise da cultura, das salas do espetáculo gastronómico, da gastronomia. O medo e as interrogações apoderaram-se da ementa do dia dos nossos restaurantes. O take away foi talvez o hashtag mais usado a seguir a Covid19. Houve quem se convertesse logo no ínicio da pandemia, como a Taberna da Rua das Flores do chef André Magalhães e houve quem resistisse e depois acabasse por ceder à paixão, como o chef Rui Sequeira e a equipa do Alameda em Faro. Com o take away não se encheram as caixas registadoras mas estreitaram-se laços. Os restaurantes entregaram-nos as suas caixas embrulhadas em humildade e compaixão muitas das vezes com direito a mensagens e arco-íris de esperança. Sentimo-nos mais que um cliente, alguém especial. Dizia o jovem chef basco Javi Rivero, num live do Basque Culinary Center, que prescindiu do serviço de entregas por uma empresa externa, não só por causa das taxas cobradas, mas porque queria continuar a ver os seus clientes olhos nos olhos e recomendar-lhes a refeição, uma forma de prolongarem o serviço e a experiência de sala do restaurante, agora num novo formato.

Não há dúvida que esta crise revelou mais humanismo, estreitou laços. E com isso, talvez a restauração aproveite a inspiração e se aproxime de quem mais precisa, assim como já se aproximou dos produtores.

Será este o momento? “Viajámos pelo mundo, servimos os ricos, deixámo-nos levar. Somos todos culpados. O que podemos fazer para tornar isto melhor? - dizia Daniel Hum, chef do Eleven Madison Park, com três estrelas Michelin em NY, no simpósio Power of Food, organizadas pela dupla Ana Músico e Paulo Barata no ínicio desta semana. Tivémos todos tempo para refletir e definir prioridades.

A NUTS pôs-se em campo para por Uma Mesa para Todos® para os mais necessitados, dada a necessidade ainda mais premente nestes tempos. Queremos mostrar que o Natal, quando se fala de matar a fome e dar conforto a quem mais precisa, tem de ser todos os dias do ano e não só em Dezembro. Estamos a envidar esforços e criar parcerias nesse sentido, para que a restauração também compreenda que é uma questão de cidadania, alimentar o próximo não só com o desperdício alimentar mas também com a arte e emoção que tanto carateriza este setor, oferendo refeições e o seu serviço, num gesto de inclusão de quem vive à parte.

Como dizia Eneko Atxa, na Basque Culinary World Prize Conference, “considero a Gastronomia um remédio para muitos males: para fortalecer a saúde, para fortalecer a economia e para fortalecer o espírito “.

Espero que, quando todo este pesadelo passar, não nos esqueçamos o quanto ligados estivemos todos uns aos outros, a partir da sala das nossas casas e como fomos solidários e cooperantes, faltando só estarmos reunidos à mesma mesa. Que nos mantenhamos todos juntos é a minha esperança. Consumidores juntos dos produtores. Clientes juntos dos restaurantes. Restaurantes juntos de quem mais precisa. #estamosjuntosmesmo pode ser o novo hashtag.